Presidente mandou me matar, diz Evo Morales ao R7, foragido no meio da mata boliviana
Confira bastidores do encontro com o ex-mandatário, que vive em uma comunidade indígena e cria tambaquis
Entrevista|Lumi Zúnica, do Núcleo Investigativo da RECORD

As horas que antecederam a viagem foram tensas. Após quatro tentativas frustradas, surgiu enfim uma chance real de entrevistar Evo Morales. Hoje com 65 anos, ele foi presidente da Bolívia por três mandatos consecutivos, de 2006 a 2019.
Foragido após receber uma ordem de prisão por suposto estupro, que ele nega, Morales estava escondido em uma comunidade indígena no estado de Cochabamba, protegido por apoiadores que barravam até militares. Com o prazo das eleições de 2025 se encerrando, e ele decidido a concorrer, tentei mais uma vez. E funcionou.
Patricia Castillo, prestigiada jornalista da Rede Uno de TV em La Paz e amiga de vários anos e coberturas, apresentou-me um importante sindicalista e braço-direito de Evo Morales. Após duas semanas de contatos na madrugada, veio a resposta: na segunda, 12 de maio, a entrevista foi autorizada.
As incertezas persistiam: ele nos receberia? Seria preso antes? Onde seria o encontro?
Na quinta, dia 15, defini a equipe: o repórter de vídeo Fabio Mengatti, o cinegrafista Juarez Rossi de Oliveira e o auxiliar Alberes dos Santos.
Segunda-feira, 19 – A viagem
Saímos de São Paulo e chegamos a Cochabamba à noite, sem saber onde seria o encontro com Morales. Suspeitávamos de Lauca Ñ, no Chapare (o que se confirmou depois). No aeroporto, alertas: se a candidatura de Morales fosse rejeitada, haveria protestos. A crise de combustíveis era grave. Do hotel, acompanhei as notícias. À meia-noite, Morales estava fora das eleições e sem partido legalizado; algo inédito em 24 anos.
Terça-feira, 20 – Rumo ao Chapare
Às duas da madrugada, uma ligação da minha fonte confirmava nossa entrevista. Pela manhã, ele disse temer “um banho de sangue”, mas garantiu que Morales não convocaria confrontos. Nosso guia nos levou até Villa Tunari. Foram mais de sete horas por estradas precárias, ladeadas por penhascos, floresta e bonecos enforcados com ameaças a ladrões.
A crise de combustível era visível. Longas filas e revenda clandestina em garrafas. Na ida, a caminhonete perdeu os freios. Na volta, tivemos que sair da estrada e parar com o freio de mão.
Quarta-feira – O exército popular
Pela manhã, seguimos para Lauca Ñ. Enfrentamos estradas de terra e barricadas. Em cada uma, nossos guias se identificavam. Chegamos à Rádio Kawsachun Coca, protegida por indígenas com lanças e escudos. Cada grupo se identifica pela cor da lança. Revezam-se em turnos e controlam o o com corredores humanos. A entrada foi autorizada após alguns minutos. Estávamos dentro.
Bastidores da entrevista com o ex-presidente Evo Morales
Comunidade indígena no estado de Cochabamba, protegido por apoiadores de Evo Morales, que barravam até militares.
A entrevista
No segundo andar, uma cozinha simples abastece o almoço de Evo Morales. Ao lado da escada, uma sala com sofás, escrivaninha, bandeiras da Bolívia, Cochabamba e a Wiphala. Na parede, sua foto emoldurada; sobre a mesa, uma matrioska russa e o livro Condução Política, de Perón.
De camiseta listrada e calça de moletom azul, Morales estava bem-humorado e com boa saúde. Durante 1h10, respondeu a tudo.
A seguir, confira os destaques da entrevista ao R7
R7 - Evo falou sobre supostas ordens emitidas pelo atual presidente, o banqueiro Luis Arce, o Lucho, para assassiná-lo dentro do que foi batizado como “Plan Negro”. No mesmo contexto, tratou do atentado a bala que sofreu recentemente.
Evo Morales - O presidente é o cabeça. Os ministros não fazem nada sem as instruções do presidente. Tudo o que tem que ser feito pelos ministros é por ordem dele.
R7 - Luis Arce seria o mandante?
Claro. Primeiro, como presidente, como comandante, é capitão, general das Forças Armadas. É chefe do Estado. Então, tudo o que fazem militares, policiais, ministros, é por ordem do presidente. Decisões políticas, nacionalização, o presidente decide. Os ministros acatam, executam. Os militares, os policiais, acatam e executam.
R7 - E sobre a acusação de estupro e ordem de prisão por ter se relacionado com uma menor de 16 anos, com quem teve um filho?
Evo Morales - Ela enviou uma carta ao juiz responsável pela investigação. Não houve tráfico, nem estupro. O caso está encerrado, não há o que debater. Se não há vítima, não há delito. Isso já investigaram. Não encontraram nada, fechado.
[Morales foi alvo da acusação em 2020 e a Justiça arquivou a denúncia. Mas o Ministério Público boliviano reabriu as investigações em 2024, razão da ordem de prisão emitida inicialmente em outubro, cassada no mesmo ano e reemitida em janeiro de 2025.]
R7 - A Justiça eleitoral lembra que o referendo de 2019 proíbe presidentes de exercer mais de dois mandatos. Também informa que você não apresentou a documentação de registro pelas vias regulares. Por último, cita que os partidos pelos quais inscreveria a sigla tiveram menos de 3% de representatividade nas últimas eleições, levando à perda de personalidade jurídica pela legislação vigente. O que pode dizer sobre a candidatura?
Evo Morales - Roubaram nossa sigla ilegalmente. Conseguimos um novo partido, o Pan-Bol, e nos eliminaram. É uma forma de atentar contra a democracia, é uma ruptura à ordem constitucional. Um golpe à democracia. É o que vivemos, é o que estamos vivendo. A batalha legal e a batalha social é que vão definir isso. Não perdemos a esperança.
R7 - E sobre a atual economia do país e o presidente Arce.
[Sobre economia, Morales acusou Arce de levar o país para uma crise profunda, por seguir as receitas do Fundo Monetário Internacional e do Banco Mundial que incentivam o Estado mínimo.]
Evo Morales - A receita do Banco Mundial e do Fundo Monetário Internacional é reduzir o Estado. Dizem: Um Estado mínimo. Esse Estado mínimo só regula, não investe. E quem investe? As empresas transnacionais. Privatizações. Além disso, implementa políticas de contração econômica.
O Estado tem que garantir movimentos econômicos. Quando tem esses movimentos, come-se mais, viaja-se mais, vende-se mais. Essas políticas de contração econômica, sob o pretexto de evitar a inflação, trouxeram muitos danos.
R7 - Questionado sobre as expectativas de conflitos, disse:
Evo Morales - Sempre apostamos na unidade. Estou convocando, agora, um reencontro nacional. De militantes, não militantes, simpatizantes, não simpatizantes, do verdadeiro instrumento político Do Evo Povo [como chama seu conjunto de apoiadores]. Tanto do campo, como também do setor urbano.
R7- Questionado sobre o presidente Lula, disse:
Evo Morales - Seria importante que o irmão presidente Lula nos ajudasse a salvar a democracia. Como me ajudou a salvar a economia na minha primeira gestão. Com reflexões e recomendações tão importantes para mim, porque eu não sabia de gestão pública. Espero que esse presidente, que já me ajudou a salvar a Bolívia, ajude novamente a salvar a Bolívia economicamente. É um presidente humanista. É um presidente que luta pela igualdade.
Bastidores viagem equipe para entrevista com Evo Morales
Bastidores viagem equipe para entrevista com Evo Morales
Encontro surpresa
No dia seguinte, fomos surpreendidos por uma ligação pedindo para voltar a encontrar Morales às 10h.
Acompanhamos sua saída da rádio, onde havia dado a entrevista, e o seguimos por aproximadamente 10 km até chegar a uma chácara numa região conhecida como Villa Victória.
Morales nos mostrou sua plantação com sete espécies de laranjas e mais de 20 lagoas onde crias peixes — em especial, tambaquis. Lá, comeu frutas, conversou com alguns agricultores e alimentou os animais. Nossa conversa foi mais informal.
Mas não pude deixar de notar que ele estava, ao fim do encontro, mais pensativo e, com certeza, preocupado.